O Tempo em Marte: Philip K. Dick fez tudo errado

O Tempo em Marte foi uma das leituras que mais me decepcionou e, por que não, com raiva.

Não só porque é um livro que faz todas as escolhas erradas, desperdiçando uma premissa boa, mas também porque a minha última experiência com o autor, Philip K. Dick, tinha sido ótima.

A primeira vez que eu li PKD foi com a coletânea de contos Sonhos Elétricos, uma antologia que explorava mundos diferentes entre si, mas onde a convivência humana era o cerne.

Eu adorei a proposta. Devorei os contos desejando que eles não acabassem tão cedo, e quando vi a oportunidade de ler mais uma história do autor, eu agarrei.

Porém, dei azar de essa história ser O Tempo em Marte, um livro confuso e mal escrito.

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A história de O Tempo em Marte

Publicado em 1964, O Tempo em Marte segue um grupo de habitantes do planeta vermelho.

Em algum momento no século XX, a humanidade conquistou Marte e o vem colonizando desde então. Porém, Marte não era um planeta vazio, mas habitado por uma raça apelidada de bleeks.

A trama do livro acontece em 1994 e segue Jack Bohlen, um técnico de manutenção que vive com a esposa.

Ele se envolve em uma trama de ganância e mistério quando conhece Manfred, o filho autista de seu vizinho, e participa dos planos inescrupulosos de Arnie, o líder sindical.

Ainda existem algumas tramas paralelas, como Jack não estar satisfeito com seu casamento e se envolver com a secretária de Arnie, Manfred participar de testes psicológicos por uma teoria de que ele veria o tempo de maneira diferente e a insatisfação da esposa de Jack.

A premissa de O Tempo em Marte nos promete uma história diferente das quais estamos acostumados quando citamos o planeta vermelho. Aqui, esse mundo já era habitado, o que poderia render ótimos comentários sobre colonização.

Também existe um mistério quanto a uma “habilidade especial” escondida no autismo e na esquizofrenia. Porém, a execução de O Tempo em Marte é desastrosa.

Problema 1: a estrutura da história

Um dos primeiros problemas que eu tive com O Tempo em Marte foi a maneira com que a história é estruturada.

O primeiro quarto do livro é completamente introdutório, sem qualquer informação relevante, sem qualquer acontecimento marcante e com um ritmo lento demais.

Então, em exatos 25% do livro, o protagonista recebe um objeto dos bleeks que parece ter alguma importância. Porém, nós passamos mais 59% da história sem grandes descobertas.

Os personagens ficam andando de um lado para o outro, tendo conversas filosóficas e traçando planos.

Nessa parte, também acompanhamos o desenvolvimento das teorias sobre Manfred conseguir usar seu autismo para prever o futuro.

Aqui também vemos nosso protagonista se perder em episódios psicóticos e reviver as mesmas cenas várias vezes.

Então, quando descobrimos os planos de Arnie para Marte e como, através da previsão de futuro que Manfred faz, tudo vai dar errado, chegamos no último terço do livro.

Em 84%, o autor nos apresenta um deus ex-machina: uma caverna no deserto onde Manfred e Jack podem viajar no tempo e impedir algo de acontecer.

A estrutura é toda bagunçada, com um ritmo diferente em cada parte, com recursos narrativos anticlimáticos e objetos que pareciam ser importantes sendo esquecidos.

Problema 2: é cheio de preconceitos

Eu poderia abrir essa seção em várias porque O Tempo em Marte é cheio de preconceitos por parte do autor que não são bem lidos nos dias de hoje.

O primeiro desses preconceitos, algo que me deixou pouco a vontade, foi a abordagem que o autor deu para o autismo e para a esquizofrenia.

Manfred é um personagem autista, que não consegue se expressar e que é visto como um recurso por Arnie.

O homem quer controlar o tempo e ele acredita que as pessoas com autismo experimentam o tempo em um ritmo diferente de quem não tem autismo. Nesse sentindo, Manfred poderia ver o futuro, mas estaria preso nesse corpo.

Já Jack é um personagem com episódios psicóticos, que é descrito como tendo esquizofrenia. Ele faz coisas das quais não se lembra e vive a mesma cena várias vezes.

Eu entendi que o autor tentou transformar esses dois distúrbios em “super poderes”, porém a construção é falha e em diversos momentos os personagens deixam a entender que quem nasce com essas condições “deveria ser exterminado”.

Por isso, a tentativa de criar um super poder a partir do autismo e da esquizofrenia se transforma em puro preconceito.

Outra falha é o trato com as personagens femininas.

As duas únicas mulheres que aparecem em O Tempo em Marte são a esposa de Jack e a secretária de Arnie. A primeira tem como função apenas se mostrar insatisfeita com o casamento e ter um caso extraconjugal.

Já a segunda é sempre descrita por seus atributos físicos e que tem relações sexuais com Jack e Arnie.

Ainda mais problemático é uma cena de estupro “conjugal”. Arnie e a secretária não são casados, mas têm uma relação e, em um momento, ele transa com ela enquanto ela dorme.

Isso é um caso clássico de estupro conjugal, quando a mulher acha que é obrigada a transar com o marido mesmo quando não quer.

Eu sempre fico impressionada em como um autor de ficção especulativa consegue imaginar muitas coisas, mas não consegue imaginar uma mulher fora do ambiente doméstico ou como o interesse amoroso.

PKD conseguiu imaginar um planeta Marte já habitado, conseguiu imaginar um distúrbio como dispositivo de viagem no tempo e conseguiu imaginar como seria colonizar o planeta vermelho.

Porém, não conseguiu imaginar uma mulher como mais do que sua serventia ao homem.

É aqui que nós vemos que nem mesmo os autores de ficção especulativa, que deveria ser inovadores, conseguem deixar de ser machistas.

Por último, o maior preconceito que esse livro apresenta é o racismo e está presente nos bleeks. O povo originário de Marte é construído para ser uma caricatura tanto dos indígenas americanos quanto os negros escravizados.

Eles vivem em tribos nômades, têm crenças mágicas e são, o tempo todo, subjugados pelos colonizadores por serem burros e escuros.

A história afirma que os bleeks viraram escravos e tiveram suas terras invadidas porque não eram pessoas o suficiente para se defenderem.

E isso é um racismo dos mais preocupantes porque beira um pensamento supremacista.

A existência desse tipo de trama seria interessante caso houvesse um comentário indicando que a narrativa não concorda.

Porém o que acontece é o contrário, a narrativa em momento nenhum condena esse comportamento, ela o reforça.

Problema 3: a falta de tato da editora

O último dos grandes problemas que envolve esse livro é a total falta de tato da Editora Aleph em publicá-lo sem nenhuma nota.

O Tempo em Marte é um livro preconceituoso que NUNCA deveria ter sido publicado sem uma justificativa por parte da editora.

A Editora Aleph podia, sim, ter publicado essa história. Porém, nunca sem ter deixado claro que ela é uma obra que deve ser lida sabendo que o autor não estava em seu melhor momento.

Ao que parece, o autor escreveu diversas de suas obras sob efeito de alucinógenos e, em determinado momento de sua carreira, apenas escrevia histórias e as publicava, sem se preocupar com edição ou planejamento.

Porém, o papel de uma editora é justamente se preocupar com a edição. Uma simples nota, avisando ao leitor sobre o conteúdo do livro, seria o suficiente.

Em resumo, O Tempo em Marte é um livro com uma boa premissa, mas que não entrega o que promete de maneira coesa e respeitosa com o leitor.

Suas tramas estão envoltas em preconceito e a história não se sustenta, nada nesse livro pode ser salvo.

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