Coração Satânico: todos os preconceitos de William Hjortsberg

Coração Satânico, livro de William Hjortsberg, é um desastre.

Ambientado na Nova Iorque de 1959, a história lançada no final dos anos 1970 segue Harry Angel, um detetive particular que é contratado por um advogado para encontrar um homem desaparecido, Johnny Favourite.

Favourite foi um cantor que sumiu nos anos 1940, mas que é pessoa de interesse para o contratante. Com o objetivo de encontrar Favourite, Harry Angel conhece o submundo do Vudu e se envolve com seitas satânicas.

Porém, o que poderia ser interessante e diferente na história é justamente onde o autor peca. William Hjortsberg apresenta uma obra com preconceitos de todos os tipos.

O que o diário de tom riddle tem a ver com política?

Coração Satânico prometia uma história policial diferente

A promessa de Coração Satânico é ser uma história noir onde um detetive é contratado pelo Diabo para encontrar uma alma vendida que não foi entregue a ele.

O início do livro consegue cumprir com esse objetivo, porém a trama se perde em uma revelação óbvia. Nós sabemos desde o início das investigações que Harry Angel é a alma que o Diabo está buscando.

Isso tira completamente a surpresa e o gosto pela investigação. Até este momento da trama, é interessante acompanhar a dedução de Harry Angel e suas andanças de uma possível testemunha à outra.

Além disso, Harry é um detetive interessante no início. Ele tem como característica assumir vários papeis durante a investigação. Sua maleta está cheia de identidades falsas e é interessante acompanhar sua transformação em diversos outros personagens.

Porém, com o decorrer da história, e a presença de outros personagens, tanto a trama quanto o protagonista vão se perdendo. Até que o leitor chega ao final da história com mais perguntas do que respostas.

A revelação de como a troca de almas entre Favourite e Angel aconteceu é muito confusa e acaba não funcionando por conta dessa confusão. Além de não ser mais um plot twist, já que essa desconfiança vem desde o início.

Acaba que no final, a premissa (até cômica) do livro fica esquecida e não tem impacto algum.

O machismo, a pedofilia e o incesto

Característica típica da literatura escrita por homens no século XX, o machismo da narrativa aparece em peso em Coração Satânico.

Tudo começa com a personagem Epiphany, uma adolescente de 17 anos que é sexualizada e explorada pela narrativa o tempo inteiro. Uma das primeiras descrições que Harry Angel faz da personagem é “os mamilos de menina marcando debaixo do suéter”.

Além de ser machista, essa observação é pedófila. Algo que não incomoda o autor, pelo contrário. A história de Coração Satânico se apoia fortemente na relação de Angel, que tem quase 40 anos, com uma menor de idade.

E a relação não é apenas descrita, ela é incentivada porque, segundo Angel, “Epiphany aparenta ser mais velha”. O resultado é uma narrativa que sexualiza uma menina de 17 anos ao ponto da pedofilia e que glorifica seus atributos físicos.

E como se essa situação não pudesse ser mais nojenta, descobrimos que Epiphany é filha de Favourite. Ou seja, a relação que ela tem com Harry Angel, que é Favourite, é incestuosa.

Infelizmente, a situação de Epiphany na narrativa não envolve apenas machismo, pedofilia e incesto, mas também racismo.

O racismo de Coração Satânico

Epiphany é uma negra, a única mulher na narrativa e sofre essa sexualização desrespeitosa. Além disso, no último capítulo descobrimos que ela foi assassinada de maneira brutal.

Ela foi amarrada na cama de Harry Angel e tem uma arma enfiada na vagina. Isso é muito grave porque esse assassinato sugere que a personagem está sendo punida por sua própria sexualidade, uma sexualidade que foi colocada nela.

Esse crime nos leva aos outros três crimes cometidos durante a história que mostra o racismo “velado” do autor. O primeiro homem a ser morto é um médico branco, que morre com um tiro no olho.

O segundo homem a morrer, um músico negro, é sufocado com os próprios órgãos genitais, que foram arrancados dele. Já a terceira vítima, uma mulher branca, tem o coração tirado do peito.

Ou seja, a morte dos personagens brancos é muito menos brutal do que a morte dos personagens negros, que eram envolvidos com Vudu. O que isso nos diz sobre a narrativa? Que além de machista, ela é racista.

A definição torta de satanismo

Também ligado ao racismo (e à falta de pesquisa) está a definição de satanismo dado no livro.

Durante a primeira metade da história, somos apresentados a personagens praticantes de Vudu. Epiphany é uma sacerdotisa dessa prática e é quem faz a tradução para Harry Angel.

Porém, a todo momento a personagem precisa explicar que Vudu não é adoração ao Diabo, embora Angel nunca aprenda a lição. Existem comparações e impressões que o personagem faz confundindo as duas coisas, o que é mais um claro sinal de racismo.

Por mais que uma praticante explicasse que Vudu é uma prática própria sem ligação com o Diabo, Harry Angel, em seu mundo cristão-centrado, apenas consegue ver o Vudu como antítese ao catolicismo.

Para além desse olhar racista do Vudu, o autor não tem o menor conhecimento de ferramentas como o tarô e a astrologia. Por exemplo, a personagem envolvida com satanismo na história é um astróloga apaixonada por tarô.

Essa confusão é justificada pelo autor no epílogo, onde ele diz que não estudou o satanismo e nem como funcionava. Ele apenas inventou práticas que estariam ligadas à crença. O que é uma completa falha com o papel de escritor.

Se você não tem certeza sobre o que está escrevendo, o mínimo é fazer uma pesquisa detalhada para não cometer erros.

O completo delírio do autor

Enfim, como se não bastante, o epílogo do livro traz uma declaração completamente delirante do autor. Ele diz que: “sem saber exatamente como, parece que eu criei um clássico original”.

Eu confesso que dei uma grande gargalhada quando li isso porque William Hjortsberg teve a coragem de ser tão pretensioso assim com uma obra que não vence o teste do tempo.

Coração Satânico não é um livro memorável, nem para a época e muito menos para os dias de hoje.

A indústria do entretenimento lembra muito mais de O Bebê de Rosemary, A Profecia e O Exorcista como obras de horror, por exemplo. Isso indica que o livro de William Hjortsberg não é nada além de uma obra de seu tempo.

Impressões sobre o livro “O Labirinto do Fauno”, da Cornelia Funke

Rolar para cima